VOCÊ SABE O QUE É UMA INJUSTIÇA EPISTÊMICA NO PROCESSO PENAL?

A injustiça epistêmica é uma injustiça relacionada ao conhecimento. Inclui ações sistêmicas de exclusão e silenciamento; distorção sistemática ou deturpação dos significados e contribuições de determinadas pessoas; desvalorização do próprio status ou posição nas práticas comunicativas; distinções injustas de credibilidade com base em características sociais irrelevantes, como raça, gênero ou orientação sexual.

Por que o assunto é importante?

Não é raro que, no processo penal, seja dada maior legitimidade a determinados elementos de prova que a outros. Nada relacionado às provas tarifadas no processo penal, onde se confere maior poder de convencimento, por exemplo, à confissão, que à prova testemunhal, no entanto.

No julgamento do REsp 2.037.491/SP, o Ministro Rogério Schietti, da Sexta turma do STJ, reconheceu a falta de provas e absolveu um jovem, acusado de tráfico de drogas. Para o ministro, o Tribunal de Justiça de São Paulo, que reformou sentença absolutória, incorreu em injustiças epistêmicas de diversos tipos, ao condenar o homem com base apenas na palavra dos policiais.

O caso

O homem teria sido avistado por policiais em região de venda de drogas e se abaixou, atitude que foi considerada suspeita. Após a abordagem, os policiais relataram que houve confissão informal, a qual não foi confirmada em juízo, ou sequer em sede policial.

Injustiça epistêmica

A expressão injustiça epistêmica, criada pela filósofa britânica Miranda Fricker, é utilizada para designar situações em que uma pessoa é genuinamente renegada na qualidade de sujeito epistêmico; ou seja, capaz de contribuir para o conhecimento e apreensão do significado de determinado fato.

A autora explica que se comete uma injustiça epistêmica testemunhal quando um ouvinte reduz a credibilidade do relato oferecido por um falante por ter, contra ele, ainda que não de forma consciente e deliberada, algum(s) preconceito(s) identitário(s). Negros, em sociedades racistas, são vitimas sistemáticas de injustiça epistêmica testemunhal.

No dia a dia dos juízos criminais, é forçoso reconhecer que a versão do acusado tem menos valor de convencimento que aquela trazida pelos policiais responsáveis pela sua prisão; e mesmo o seu silêncio deixa de ser interpretado como o exercício de um direito conferido pela Constituição Federal, para ser tratado como estratégia para fugir à sua responsabilização penal.

O acórdão do TJSP

Disse o Tribunal que a negativa do réu em juízo quanto à confissão foi estratégia para evitar a condenação. Confira o trecho:

“Fosse verdadeira a frágil negativa judicial, certamente o réu a teria apresentado perante a autoridade policial, quando, entretanto, valeu-se do direito constitucional ao silêncio. Comportamento que, se por um lado não pode prejudicá-lo, por outro permite afirmar que a simplória negativa é mera tentativa de se livrar da condenação.”

Direito ao silêncio

Para o Ministro relator, o direito ao silêncio, enumerado na Constituição Federal como direito de permanecer calado, é sucedâneo lógico do princípio nemo tenetur se detegere. Neste sentido, é equivocado qualquer entendimento de que se conclua que seu exercício possa acarretar alguma punição ao acusado. A pessoa não pode ser punida por realizar um comportamento a que tem direito.

E, complementa:

“É preciso reconhecer que, se se pretende aproveitar a palavra do policial, impõe-se a exigência de respaldo probatório que vá além do silêncio do investigado ou réu. O silêncio não descredibiliza o imputado e não autoriza que magistrados concedam automática presunção de veracidade às versões sustentadas por policiais”.

Conclusão

No processo acusatório, característica que se almeja seja a do processo penal brasileiro, deve-se enfrentar, cotidianamente, a injustiça epistêmica contra pessoas vulnerabilizadas, seja em razão de sua cor, hipótese mais comumemente verificada no sistema penal; seja em razão do seu sexo ou orientação sexual, hipóteses que igualmente atraem os mais diversos tipos de preconceitos dos operadores do direito na Justiça Criminal brasileira.

Flávio Milhomem
Flávio Milhomem

Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade Católica Portuguesa, Especialista em Combate à Corrupção (Magistrado Associado) pela Escola Nacional da Magistratura Francesa (ENM/France).