Condenação do acusado à pena de multa – A sobrepunição da pobreza continua!

A impossibilidade de pagar multa não impede a extinção da punibilidade de condenados que não têm condições financeiras para fazê-lo, segundo a tese firmada pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O entendimento é uma revisão do tema 931, sob a sistemática dos recursos repetitivos, que estabelecia que o não pagamento da multa não obstava a extinção da punibilidade. O entendimento revisado se aplica aos condenados hipossuficientes ou insolventes. O relator do caso, ministro Rogerio Schietti Cruz, afirmou que a extinção da punibilidade é de especial importância para ex-presidiários que desejam reconstruir suas vidas e evitar a interdição de direitos decorrente da não extinção da punibilidade, que leva a um “estágio de desmedida invisibilidade”. 

A efetiva aplicação do Tema 931/STJ

As preocupações do ministro, infelizmente, permanecem atuais. Em matéria publicada pela Agência Pública, em 02 de maio de 2023; em São Paulo, estado com a maior população carcerária do país (197 mil), os casos de execução de multas têm aumentado vertiginosamente. Até o dia 31 de março, 208 mil estavam em andamento. Eram 6 em janeiro de 2020, segundo dados fornecidos pelo Tribunal de Justiça do Estado à Agência Pública. Apenas na capital são 50.050 ações referentes a multas não pagas.

A aplicação da pena de multa está prevista no Código Penal desde 1940, mas até recentemente era assunto de natureza fiscal, não criminal. Após definir a pena, o magistrado apenas informava à Fazenda Pública, responsável pela cobrança, que a multa havia sido aplicada. A Fazenda deixava de executar a grande maioria das cobranças por considerar que o custo do ajuizamento das ações era maior que a quantia que deveria ser paga. Na capital paulista, por exemplo, cerca de 22 mil dos 50 mil casos de multas em aberto tratam de multas entre R$ 200,01 e R$ 500.

Casos analisados pela Agência Pública

A matéria cita o caso de uma jovem grávida de oito meses que se dirige a um supermercado e, quando vai efetuar o pagamento na função débito, tem o cartão recusado. Sem entender o motivo, ela consulta o saldo e se surpreende com a observação “bloqueio judicial” ao lado do único valor disponível na conta — R$ 375.

Na tentativa de resolver o bloqueio de seu cartão, Jéssica Santos, a gestante, recorreu à Defensoria Pública. Soube então que o processo que motivou o bloqueio tinha relação com a sentença de oito anos de privação de liberdade pelos crimes previsto na Lei de Drogas que já tinha cumprido: R$ 22.260 de pena de multa pela condenação por tráfico e R$ 15.900 por associação ao tráfico, totalizando R$ 38.160.

Cada “dia-multa” equivale a 1/30 do salário mínimo vigente, o que atualmente corresponde a R$ 44. O valor total da multa depende do delito e da análise do juiz. Porém, alguns tipos de crimes já têm um mínimo de dias-multa estipulado pela lei. No caso de pessoas condenadas por roubo, furto ou estelionato, o montante pode variar entre 10 e 360 dias-multa, ou R$ 440 e R$ 15.840. Em penas relacionadas ao tráfico de drogas, como a de Jéssica, o mínimo previsto é de 500 dias-multa, ou R$ 22 mil, podendo chegar a 1.500 dias – cerca de R$ 6,6 milhões. 

Jéssica conta que quando deixou a prisão em 2018, após ter cumprido parte da pena, não foi informada de que deveria quitar o valor nem de que o não pagamento poderia gerar problemas. Desempregada e hoje com uma filha de 3 meses, ela mora com a mãe, que vive de bicos, e não tem condições de efetuar o pagamento. No dia 6 de março de 2023, passados cinco anos da condenação, a Justiça julgou extinta a pena a pedido da Defensoria.

Outro caso é o de um homem que soube que sua motocicleta, utilizada para gerar a principal fonte de renda da família, corria risco de ser penhorada.

Condenado por tráfico, *Osvaldo conta que assim que deixou a prisão, para cumprir o restante da pena em regime aberto, recebeu uma carta informando que tinha dez dias para pagar os R$ 13.500 correspondentes à pena de multa.
“Como que uma pessoa que fica dez anos presa vai sair, vai ter R$ 13.500 para pagar essa multa em dez dias?”, questiona. “Tentei parcelar, pra pagar uns R$ 300 por mês, mas não aceitaram.”

Sem condições de quitar a dívida, ele focou em conseguir um emprego formal para garantir o seu sustento, da filha e do neto de 4 anos. Conseguiu um emprego como porteiro. Uma das condições era que ele deveria ir até o local com a sua motocicleta, pois era em um bairro distante de sua casa e a empresa não lhe pagaria mais que duas conduções.

Porém, após ter se estabilizado no trabalho descobriu um novo problema: o pedido de penhora da motocicleta. “Poxa, eu uso a moto pra trabalhar, que é o meu ganha-pão. Aí eles bloqueiam. Se eu perder a moto, não tem como eu trabalhar. Aí eu vou fazer o quê?”

A formalidade exigida para a comprovação da hipossuficiência financeira


Embora a interpretação jurisprudencial não condicione mais, em casos de hipossuficiência financeira, a quitação da pena de multa após o cumprimento da pena privativa de liberdade para a declaração da extinção da punibilidade do apenado, é necessário comprovar a falta de recursos.

Não é raro que se exija a prova de condições econômicas ou hipossuficiência prioritariamente feita por documentos e não pela declaração do próprio interessado, ou eventual pessoa que faça a declaração. A exigência, eventualmente feita por magistrados e membros do Ministério Público, desconsidera que os egressos do sistema penal sofrem marginalização e estigmatização, o que restringe significativamente a possibilidade de acesso ao mercado formal de trabalho; sendo mais provável que estes desenvolvam atividades econômicas precarizadas, e passem ao largo do sistema financeiro nacional. Como se exigir documentos numa situação como essa?

A sobrepunição da pobreza continua

Ao se negar, nas instâncias ordinárias, o que foi decidido pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, dá-se continuidade ao que o Min. Schietti chamou de “sobrepunição da pobreza”,  fazendo com que o egresso miserável, e sem condições de trabalho durante o cumprimento da pena, não tenha como conseguir os recursos para o pagamento da multa, ingressando, assim, em círculo vicioso de desespero; o que leva, infelizmente, à reincidência criminal.

Flávio Milhomem
Flávio Milhomem

Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade Católica Portuguesa, Especialista em Combate à Corrupção (Magistrado Associado) pela Escola Nacional da Magistratura Francesa (ENM/France).