Equilíbrio entre Segurança e Direitos na Apreensão de Adolescentes no Rio de Janeiro

Introdução

Recentemente, a justiça do Rio de Janeiro se viu no centro de um intenso debate sobre a apreensão de adolescentes. A controvérsia gira em torno da decisão que atende a pedido do Ministério Público e proíbe a apreensão de menores sem flagrante, uma medida que ressoa com as disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mais especificamente no Art. 106, que estabelece as condições para a privação de liberdade de adolescentes. 

Contexto Legal

O ECA, sob a Lei nº 8.069/90, é um marco legal que visa proteger os direitos das crianças e adolescentes. No entanto, sua aplicação prática muitas vezes encontra desafios, especialmente em contextos de segurança pública. A decisão recente da Justiça do Rio, ao proibir a apreensão de adolescentes sem a devida comprovação de ato infracional, reacendeu discussões sobre como equilibrar a segurança pública e os direitos dos jovens.

Dados Alarmantes

O Ministério Público do Rio de Janeiro, ao analisar o período de 25 de novembro a 3 de dezembro, observou que 89 jovens foram atendidos na Central Carioca após abordagem de agentes de segurança. Muitos desses adolescentes foram detidos sem estar em flagrante delito ou em situação de abandono, o que levanta questões sobre a legalidade e a ética dessas apreensões.

Impacto Social e Racial

A decisão da Justiça também põe em destaque a dimensão racial do problema. A maioria dos jovens apreendidos eram negros, incluindo um adolescente de Copacabana retirado aleatoriamente de um ônibus. Esse aspecto ressalta as preocupações com o perfil racial e social nas políticas de segurança pública.

Perspectiva do Conselho Nacional de Justiça

A Corregedoria Nacional de Justiça abriu um pedido de providências para apurar a conduta da juíza Lysia Maria da Rocha Mesquita, visando avaliar se sua decisão alinha-se às normas constitucionais e legais.

ADI 3446

A decisão proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3446 merece uma análise detalhada, dada a sua importância na definição dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil. Essa decisão, focada no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ressalta a importância de proteger as liberdades fundamentais desses grupos vulneráveis em nossa sociedade.

A ADI 3446 foi proposta pelo Partido Social Liberal (PSL), questionando a constitucionalidade de determinados aspectos do ECA, especialmente os artigos relacionados ao direito de locomoção de crianças e adolescentes e as condições em que podem ser apreendidos. O ponto central da controvérsia era se o ECA, ao proteger esses direitos, contrariava ou não a Constituição Federal.

No julgamento, o Ministro Gilmar Mendes, relator da ação, destacou a importância de reconhecer as crianças e os adolescentes como sujeitos plenos de direitos. Ele reforçou que o direito de ir e vir é fundamental e que sua restrição, fora das hipóteses legais de flagrante de ato infracional, seria uma abordagem contraproducente, levando à implementação de políticas higienistas que restringiriam ainda mais os direitos dos menores.

A ação foi julgada improcedente, com o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecendo a constitucionalidade do artigo 230 do ECA. Este artigo estabelece como crime a conduta de privar crianças e adolescentes de sua liberdade sem estar em flagrante de ato infracional ou sem ordem escrita da autoridade judiciária competente. A decisão foi um marco na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, reafirmando a doutrina da proteção integral positivada na Constituição Federal de 1988.

Esta interpretação considera crianças e adolescentes cidadãos em pleno desenvolvimento, com direitos e liberdades que devem ser efetivados. Esta visão está alinhada com a concepção da Constituição de 1988, que abraçou a proteção integral dos menores, assegurando-lhes direitos à dignidade, ao respeito e à liberdade, e proibindo qualquer forma de negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão.

A decisão na ADI 3446 reforça a ideia de que as crianças e os adolescentes não podem ser tratados como meros objetos de intervenção estatal, mas sim como indivíduos com direitos e liberdades que precisam ser respeitados e garantidos. 

Conclusão

O caso no Rio de Janeiro destaca o desafio contínuo de equilibrar a segurança pública e o respeito aos direitos dos adolescentes. Enquanto a violência e a insegurança continuam sendo questões urgentes, é crucial que as medidas adotadas não violem os princípios legais e éticos que protegem todos os cidadãos, especialmente os mais jovens e vulneráveis. Citando-se Rubens Casara, Juiz de Direito do TJRJ e integrante da Associação de Juízes pela Democracia – AJD: “Nas democracias constitucionais, que se caracterizam pela existência de limites ao exercício do poder, violar a normatividade democrática é sempre um erro (mesmo quando a ilegalidade agrada aos detentores do poder político e/ou econômico)”.

Flávio Milhomem
Flávio Milhomem

Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade Católica Portuguesa, Especialista em Combate à Corrupção (Magistrado Associado) pela Escola Nacional da Magistratura Francesa (ENM/France).