TRANSFOBIA NO DIA INTERNACIONAL DA MULHER

No Dia Internacional da Mulher, o Deputado Federal Nicolas Ferreira, do PL de Minas Gerais, usou a tribuna para criticar o feminismo de “homens que se sentem mulheres”. Utilizando uma peruca loura, o parlamentar se apresentou como “Deputada Nicole” para dizer que o lugar das mulheres está sendo roubado pelas transexuais.

Ele também ironizou o movimento por igualdade de direitos das mulheres e defendeu que elas retomem a sua feminilidade, concebendo filhos e casando. Tais condutas, apesar de misóginas, refletem apenas o pensamento do parlamentar. O direito penal nos Estados Democráticos de Direito, a exemplo do Brasil, não criminaliza o pensar (direito penal do autor), reservando a punição para as condutas contrárias ao Direito (direito penal do fato).

Porém, no momento em que o parlamentar afirma, “eu estou defendendo a liberdade de um pai recusar que um homem, um marmanjo, entre no banheiro da sua filha, sem você ser acusado de transfóbico”, referindo-se a uma mulher transexual, ele está supostamente cometendo um crime, o crime de transfobia recreativa, como forma de racismo social, que encontra a previsão no artigo 20 da Lei de Racismo, de acordo com a interpretação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal.

Em 2019, o STF reconheceu a discriminação e preconceito de raça, na modalidade racismo social por orientação sexual (homofobia), como crime (ADO 26/19). No julgamento, sob a relatoria do Min. Celso de Mello, fixou-se a seguinte tese:

I – Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”);

II – A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero;

III – O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.

A Constituição Federal em seu artigo 3º, Inciso IV, preceitua constituírem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação; e, por esta razão, a imunidade parlamentar material não alcança a prática do discurso de ódio, porque este, além de inconstitucional, não é o objeto do mandato eletivo.

A violência simbólica do discurso, transforma-se em violência real. Em 2023, pelo décimo quarto ano consecutivo. O Brasil é o país que mais mata trans e travestis. De acordo com o ranking da Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA, entregue ao ministro dos Direitos Humanos, 131 pessoas foram mortas em 2022, apenas por serem travestis e transexuais. 

Flávio Milhomem
Flávio Milhomem

Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade Católica Portuguesa, Especialista em Combate à Corrupção (Magistrado Associado) pela Escola Nacional da Magistratura Francesa (ENM/France).