Liberdade de Expressão e Restrições no Sistema Penitenciário: Uma Análise Jurídica

Introdução

O conceito de liberdade de expressão é um pilar fundamental em qualquer sociedade democrática. No Brasil, esse direito é assegurado pelo Artigo 5º, Inciso IX, da Constituição Federal, que garante a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação. Este artigo explora as nuances dessa liberdade, especialmente no contexto do sistema penitenciário, abordando a Lei de Execução Penal (LEP), Portaria DISPF/DEPEN/MJSP nº 6 de 2022, e recentes decisões judiciais.

1. A Liberdade de Expressão na Constituição

O Art. 5º, IX da Constituição Federal é um marco na proteção das liberdades individuais, proibindo qualquer forma de censura ou necessidade de licença para a expressão intelectual, artística, científica e de comunicação. Esse dispositivo reflete o compromisso do Estado Brasileiro com a liberdade de pensamento e expressão, considerados essenciais para o desenvolvimento humano e social.

2. A Lei de Execução Penal (LEP) e a Comunicação dos Presos

A LEP, em seu Art. 41, XV, aborda os direitos dos presos, incluindo o contato com o mundo exterior. Esse contato é permitido por meio de correspondência escrita, leitura e outros meios de informação, desde que não comprometam a moral e os bons costumes. Este artigo enfatiza a importância da comunicação e da informação para os detentos, como parte de sua reintegração social e manutenção de vínculos externos.

3. Portaria DISPF/DEPEN/MJSP Nº 6 de 2022 e o Manual de Assistências do Sistema Penitenciário Federal

O Manual de Assistências do Sistema Penitenciário Federal, especificamente em seus Artigos 120, 121 e 124, detalha as normas para a correspondência dos presos no sistema penitenciário federal. Ela assegura o direito ao envio de carta social, estabelece que as correspondências devem ser enviadas pelos correios e submetidas à análise da Divisão de Inteligência da Penitenciária Federal. Essas medidas visam equilibrar o direito de comunicação dos presos com a segurança pública e a ordem jurídica.

4. Restrições e Permissões Literárias no Sistema Penitenciário

Durante a realização do XII Workshop sobre o Sistema Penitenciário Federal, promovido pelo Conselho da Justiça Federal, foi aprovado, em 08 de outubro de 2021, o Enunciado n. 82, que apresenta uma intrigante perspectiva sobre a produção literária autoral por presos. Ele permite que presos produzam obras literárias, como biografias e poemas, desde que autorizados pela direção da penitenciária. Contudo, a saída do material ou sua divulgação é restrita.

“Enunciado n. 82 – Será permitida ao preso produção literária autoral como escrita de biografia, poemas, contos e outros dessa natureza, desde que autorizada pela direção da penitenciária federal, sendo vedada a saída do material ou sua divulgação”. (XII Workshop sobre o Sistema Penitenciário Federal).

5. A insconstitucionalidade da exigência de autorização para a produção artística e intelectual

A exigência de autorização prévia para a realização de atividades artísticas e intelectuais por indivíduos encarcerados suscita um debate significativo no âmbito dos direitos fundamentais, especialmente sob a ótica do princípio da proporcionalidade. O princípio da proporcionalidade, um pilar central no direito constitucional, exige que as limitações impostas a um direito fundamental sejam necessárias, adequadas e proporcionais em sentido estrito. Isto é, a restrição deve ser indispensável para alcançar um objetivo legítimo, deve ser o meio menos restritivo possível para alcançá-lo e deve haver um equilíbrio razoável entre os direitos restringidos e os interesses a serem protegidos.

No contexto prisional, a liberdade de expressão artística e intelectual é frequentemente submetida a controles rigorosos sob o pretexto de segurança e ordem institucionais. Entretanto, tal exigência de autorização prévia pode ser vista como uma restrição excessiva e desproporcional, uma vez que o ato de criar e expressar-se artisticamente é intrínseco à dignidade humana e ao desenvolvimento pessoal. A criação artística e a expressão intelectual são meios através dos quais os indivíduos exploram e comunicam suas experiências, emoções e pensamentos, desempenhando um papel crucial na reabilitação e na ressocialização de detentos.

Além disso, a imposição de tais restrições deve ser cuidadosamente avaliada à luz dos objetivos que procura alcançar. Embora a manutenção da segurança e da ordem seja uma preocupação legítima, é questionável se a censura prévia de atividades artísticas e intelectuais é um meio eficaz e necessário para esse fim. Com frequência, essas atividades não apresentam um risco direto à segurança ou à ordem da instituição penal, sugerindo que a exigência de autorização prévia pode ser mais uma medida de controle excessivo do que uma necessidade de segurança.

Portanto, a restrição à liberdade artística e intelectual no contexto prisional, especialmente quando fundamentada em autorizações prévias, deve ser minuciosamente analisada sob a perspectiva do princípio da proporcionalidade. Tal análise deve considerar não apenas a importância da segurança prisional, mas também o impacto dessas restrições no desenvolvimento pessoal e na dignidade dos detentos, que continuam a ser titulares de direitos fundamentais, apesar de sua condição de reclusão.

6. Caso Recente: Processo: 1002951-32.2022.4.01.4100 (TRF1)

A solicitação de um prisioneiro para obter uma cópia de sua correspondência perdida, que continha poemas de sua autoria, foi negada inicialmente. Em resposta, a Defensoria Pública da União (DPU) recorreu ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), buscando recuperar a correspondência extraviada e obter permissão para que a advogada do detento retirasse o documento.

Quanto à produção literária em presídios, o juiz federal Marllon Sousa, atuando como relator no TRF1, reafirmou a necessidade de autorização prévia da administração da penitenciária federal para que os detentos possam criar obras literárias, incluindo biografias, poemas e contos, com fundamento  no já referido Enunciado n. 82 do Workshop do Sistema Penitenciário Federal.

O juiz concluiu que o preso não havia recebido a autorização necessária para a produção dos poemas que desejava enviar à sua advogada, utilizando-se de cartas sociais de maneira inadequada. Com base nessa avaliação, o relator votou pela manutenção da decisão inicial, no que foi acompanhado pelos demais integrantes da 11ª Turma do tribunal.

O caso chegou ao STF, e no julgamento ARE 1470552, o Ministro Edson Fachin em  18 de dezembro de 2023, negou seguimento ao Recurso Extraordinário, reafirmando as limitações impostas dentro do contexto prisional. Este caso ilustra a complexidade e os desafios na aplicação dos direitos constitucionais no ambiente carcerário.

Conclusão

A liberdade de expressão, um direito fundamental e inalienável, enfrenta restrições significativas no ambiente do sistema penitenciário. Essas limitações são produto de um delicado equilíbrio estabelecido por normativas e decisões judiciais, que procuram harmonizar o direito individual de expressão dos detentos com a imperativa necessidade de segurança pública. Este equilíbrio é vital não apenas para a preservação da ordem e da justiça, mas também para assegurar o respeito à dignidade e aos direitos fundamentais dos indivíduos que se encontram privados de sua liberdade.

Nesse contexto, é imperativo lembrar o impacto cultural e social de obras artísticas originárias do sistema prisional. Um exemplo emblemático são as músicas do grupo Racionais MC’s, concebidas dentro desse contexto prisional. Suas letras, que retratam vividamente a realidade da vida no cárcere, transcenderam as barreiras do sistema prisional, tornando-se não apenas expressões culturais valiosas, mas também fontes de conhecimento e inspiração. Tamanha foi a influência dessas obras que elas foram utilizadas como material de referência no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) – https://oglobo.globo.com/brasil/educacao/enem-e-vestibular/noticia/2023/11/12/versos-dos-racionais-voltam-a-aparecer-em-cadernos-de-prova-do-segundo-dia-do-enem.ghtml , reafirmando a relevância e a profundidade de seu conteúdo. Além disso, o reconhecimento acadêmico conferido aos membros do grupo, na forma do título de Doutores Honoris Causae pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) – https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/cultura/audio/2023-11/grupo-racionais-mcs-vai-receber-titulo-de-honoris-causa-da-unicamp, sublinha a importância de suas contribuições não apenas no âmbito artístico, mas também no educacional e social. Estes exemplos demonstram como a expressão artística, mesmo sob condições restritivas, pode transcender barreiras e servir como um poderoso veículo para a reflexão, educação e transformação social.

Flávio Milhomem
Flávio Milhomem

Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade Católica Portuguesa, Especialista em Combate à Corrupção (Magistrado Associado) pela Escola Nacional da Magistratura Francesa (ENM/France).