CASO MAURO CID – A Polícia Federal pode oferecer acordo de colaboração premiada sem a anuência do Ministério Público?

O acordo do Ten. Cel. do Exército Mauro Cid

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, homologou no último sábado, dia 9, o acordo de colaboração premiada do tenente-coronel Mauro Cid, que anteriormente havia sido ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro. Essa decisão do ministro também resultou na libertação provisória de Mauro Cid, que estava sob custódia desde maio deste ano.

Ao conceder a liberdade provisória a Mauro Cid, o ministro Moraes impôs algumas medidas cautelares, incluindo o uso de tornozeleira eletrônica, restrições de locomoção durante os fins de semana e no período noturno, além do afastamento de suas funções no Exército.

A manifestação do Procurador-Geral da República

Por outro lado, o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, manifestou críticas em relação ao acordo de delação premiada firmado por Mauro Cid. Aras utilizou suas redes sociais para comunicar que a PGR (Procuradoria-Geral da República) “não endossa delações conduzidas pela Polícia Federal.”

A Polícia Federal tem a prerrogativa de propor acordos de colaboração premiada sem a anuência do Ministério Público? 

Fica em aberto a questão: a Polícia Federal tem a prerrogativa de propor acordos de colaboração premiada sem a anuência do Ministério Público? 

Na decisão proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5508/DF, foi estabelecido o entendimento em relação à delação premiada e aos acordos que a envolvem. O foco da discussão centrou-se nos parágrafos 2º e 6º do artigo 4º da Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, que tratam da legitimidade do delegado de polícia para conduzir e entabular acordos de colaboração premiada. A ação alegou afronta a diversos dispositivos constitucionais, incluindo os artigos 5º (devido processo legal), 37 (moralidade administrativa), 129 (titularidade do Ministério Público para a ação penal e princípio acusatório), 144 (múnus constitucional da função policial) e outros da Constituição Federal. O relator da ação, o Ministro Marco Aurélio, apresentou os fundamentos, que foram endossados pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

A colaboração premiada

Em resumo, a delação premiada é um depoimento prestado à autoridade que será considerado, incluindo suas consequências, pelo órgão julgador, para reconhecer os benefícios previstos na Lei. Este depoimento se destaca por conter informações que podem levar a resultados previstos na própria Lei, tais como a identificação de coautores e partícipes de crimes, a revelação da estrutura de organizações criminosas, a prevenção de infrações, a recuperação de produtos de crimes e a localização de vítimas.

A Lei nº 12.850/2013 tem como objetivo combater organizações criminosas, alinhando-se aos princípios constitucionais da eficiência e da segurança pública. `O parágrafo 6º do mesmo artigo, que também é alvo da ação, define que o juiz não participará das negociações para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado, o defensor e com a manifestação do Ministério Público, ou, quando apropriado, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.

A legitimidade do Delegado de Polícia

Esses preceitos conferem ao delegado de polícia a legitimidade para propor acordos de colaboração premiada durante a fase de investigação, como no inquérito policial, um instrumento crucial para a obtenção de provas. A oportunidade para a colaboração premiada pode ocorrer tanto durante a investigação quanto após o início da ação penal, quando a atribuição será exclusiva do Ministério Público.

É importante destacar que, em nenhum momento, a norma afasta a participação do Ministério Público na colaboração premiada, mesmo quando esta é conduzida pelo delegado de polícia, garantindo assim o controle externo da atividade policial e a necessária revisão pelo Ministério Público e pelo Judiciário.

A atribuição concorrente para o oferecimento do acordo

Apesar de o Ministério Público ser o titular da ação penal pública, a delação premiada não retira essa titularidade, uma vez que o objeto da delação, que auxilia nas investigações, e os benefícios concedidos são definidos em sentença pelo órgão julgador. Portanto, o argumento de que apenas o Ministério Público pode negociar acordos de colaboração premiada não tem base constitucional.

Os dispositivos impugnados estabelecem regras claras sobre a legitimidade do delegado de polícia na condução de acordos de colaboração premiada durante a fase de investigação, assegurando a manifestação do Ministério Público e, assim, respeitando os princípios constitucionais relacionados às polícias judiciárias e às atribuições dos delegados de polícia. 

Houve alteração de entendimento com a anulação do acordo do ex-Governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral?

Em setembro de 2021, durante o julgamento do Pet 8482 AgR / DF, o Supremo Tribunal Federal acolheu preliminar apresentada pela Procuradoria Geral da República. Essa decisão teve como consequência estabelecer que, no caso específico do ex-governador Sérgio Cabral, os acordos de colaboração premiada firmados pela Polícia Federal (PF) deveriam ser submetidos à anuência do Ministério Público.

Esse entendimento foi respaldado pelos ministros Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Nunes Marques e Ricardo Lewandowski. No entanto, é relevante destacar que os votos destes cinco ministros enfatizaram que sua decisão não estabelecia uma tese com efeito erga omnes, ou seja, uma regra geral aplicável a todas as situações, sobre a absoluta ausência de legitimidade da autoridade policial para celebrar acordos de colaboração premiada.

Portanto, de acordo com a posição defendida por Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Nunes Marques e Ricardo Lewandowski, a exigência de aprovação do Ministério Público para acordos de delação firmados pela polícia só é válida para o caso específico do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. Apenas os ministros Fachin e Fux opinaram que a anuência do Ministério Público é necessária em todos os acordos celebrados por delegados da Polícia Federal.

Dessa forma, a jurisprudência estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal continua a permitir que a polícia judiciária mantenha sua competência para celebrar termos de colaboração, como foi decidido anteriormente na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.508.

Conclusão

Qualquer interpretação, para o STF, que concentre o poder exclusivamente no Ministério Público desvirtuaria a essência da Lei nº 12.850/2013, na qual todas as autoridades envolvidas – delegados de polícia, membros do Ministério Público e juízes – desempenham papéis essenciais na busca pela justiça criminal, cada um de acordo com suas funções constitucionais legítimas.

Flávio Milhomem
Flávio Milhomem

Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade Católica Portuguesa, Especialista em Combate à Corrupção (Magistrado Associado) pela Escola Nacional da Magistratura Francesa (ENM/France).