STJ manda soltar porteiro reconhecido apenas por foto em 62 processos

A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, órgão responsável pela harmonização da interpretação jurisprudencial das turmas criminais, determinou nesta quarta-feira, 10 de maio, que seja solto imediatamente um homem acusado em 62 ações penais a partir apenas do reconhecimento fotográfico.

O acusado

Paulo Alberto da Silva Costa, porteiro de um prédio, nunca teve prisões ou acusações anteriores, mas teve fotos retiradas de redes sociais e incluídas no álbum e no mural de suspeitos da Delegacia de Belford Roxo (RJ).

A justificativa foi que sua aparência física era compatível com a descrição apresentada por vítimas de crimes. O porteiro é um homem negro de 36 anos e está preso desde março de 2020. 

Fotografias são usadas frequentemente como prova em investigações criminais, mas muitas vezes isso resulta em condenações injustas, como no caso de Paulo Alberto, que ainda teve a pena aumentada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro para oito anos, antes de o caso ser levado ao STJ.

O Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) apontou que todos os 62 casos seguiram o mesmo procedimento policial, que consistia apenas no reconhecimento fotográfico e no encerramento rápido das investigações, sem a produção de outras provas. 

A anulação no STJ

Os ministros do STJ consideraram que todos os processos foram baseados em identificações falhas por fotografia. A relatora do caso, ministra Laurita Vaz, afirmou que houve um erro sistêmico e que a identificação apresentava contradições, como a altura do suspeito, que só surgiu em um segundo momento. Ela ressaltou que o STJ tem entendimento de que apenas o reconhecimento fotográfico não é suficiente como prova cabal de crime. A ministra destacou que o reconhecimento de pessoas não é mais importante do que outras provas, como confissões, testemunhas e perícias.

O ministro Rogério Schietti também criticou a prática de enviar alguém para a prisão apenas com base em uma identificação falha por fotografia. Ele descreveu o caso como vergonhoso para o sistema de Justiça. Já o ministro Sebastião Reis afirmou que o sistema falhou ao demonstrar um desprezo pelo ser humano. Ele acrescentou que o racismo é evidente nos casos analisados e que as pessoas negras e pobres são os principais alvos da polícia.

Como o tema é tratado no STF?

Tratando do mesmo objeto, em julgamento concluído no dia 23/2/2022, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal deu provimento ao RHC n. 206.846/SP (Rel. Ministro Gilmar Mendes), para absolver um indivíduo preso em São Paulo depois de ser reconhecido por fotografia, tendo em vista a nulidade do reconhecimento fotográfico e a ausência de provas para a condenação. Reportando-se ao decidido no julgamento do HC n. 598.886/SC, no STJ, foram fixadas três teses: 

I – O reconhecimento de pessoas, presencial ou por fotografia, deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime e para uma verificação dos fatos mais justa e precisa; 

II – A inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita, de modo que tal elemento não poderá fundamentar eventual condenação ou decretação de prisão cautelar, mesmo se refeito e confirmado o reconhecimento em Juízo.  Se declarada a irregularidade do ato, eventual condenação já proferida poderá ser mantida, se fundamentada em provas independentes e não contaminadas;

III – A realização do ato de reconhecimento pessoal carece de justificação em elementos que indiquem, ainda que em juízo de verossimilhança, a autoria do fato investigado, de modo a se vedarem medidas investigativas genéricas e arbitrárias, que potencializam erros na verificação dos fatos.

A validade epistemológica do reconhecimento fotográfico

A nova interpretação do art. 226 do CPP reforça a importância de observar o procedimento de reconhecimento de pessoas como uma garantia mínima para o suspeito de um crime e para uma verificação mais justa e precisa dos fatos. A invalidação do reconhecimento em caso de inobservância não pode fundamentar eventual condenação ou prisão cautelar, devendo ser mantida apenas se houver provas independentes e não contaminadas.

Flávio Milhomem
Flávio Milhomem

Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade Católica Portuguesa, Especialista em Combate à Corrupção (Magistrado Associado) pela Escola Nacional da Magistratura Francesa (ENM/France).