ESCRAVIDÃO E RACISMO NA SERRA GAÚCHA – Análise jurídica

ESCRAVIDÃO EM BENTO GONÇALVES/RS

Cerca de 200 homens contratados para trabalhar na colheita de uva em Bento Gonçalves, na serra gaúcha, foram resgatados na quarta-feira,  22 de fevereiro, em situação análoga à escravidão. Eles trabalhavam para duas empresas que eram contratadas pelas vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton.

Segundo os órgãos públicos acionados, Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho e polícias Federal e Rodoviária Federal, 192 trabalhadores relataram ter sido enganados pela promessa de emprego temporário, salário de R$ 4.000, alojamento e refeições pagas.

Os trabalhadores, todos baianos, relataram à Inspeção do Trabalho que eram submetidos a choques elétricos para acordar; que iniciavam o trabalho às 4h da manhã e iam até as 8h ou 9h da noite, numa jornada extremamente exaustiva.

Ao MPT e ao Ministério do Trabalho, os homens relataram também que ficavam sob vigilância de seguranças armados; e que sua origem era citada de maneira pejorativa pelo encarregado.

Eles contaram que a comida fornecida pela empresa chegava a eles já estragada. Caso quisessem comprar outros alimentos, só poderiam fazê-lo em um mercadinho a poucos metros do alojamento, que praticava, segundo eles, preços superfaturados. As compras, disseram, eram descontadas do salário. 

O Código Penal tipifica o crime de redução a condição análoga à de escravo, em seu art. 149:

 Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:

Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.           

§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:

I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;         

II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.        

§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:

I – contra criança ou adolescente;          

II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.          

Da análise dos fatos noticiados, resta igualmente suficientemente indiciada prática do crime de tráfico de pessoas. A suspeita é de que o valor do transporte, e toda a logística necessária para levar esses cerca de duzentos trabalhadores do Estado da Bahia para a Serra Gaúcha, a 3.000 quilómetros de suas residências, tenha sido cobrado desses trabalhadores e descontado daquele valor que teria sido prometido para o período. A suspeita é de que muito provavelmente os trabalhadores, na realidade, não receberiam nada ou muito pouco, tendo ainda que quitar as dívidas contraídas a partir da aquisição de alimentos na mercearia da empresa responsável pela submissão desses mesmos trabalhadores a essa condição de indignidade, de redução à condição análoga à de escravo.

O crime de tráfico de pessoas está previsto no art. 149-A do Código Penal:

Tráfico de Pessoas

Art. 149-A.  Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de:

I – remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;               

II – submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;               

III – submetê-la a qualquer tipo de servidão;               

IV – adoção ilegal; ou

V – exploração sexual.               

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

RACISMO NA CÂMARA MUNICIPAL DE CAXIAS DO SUL/RS

No dia 28 de fevereiro, o Vereador Sandro Fantinel pediu que empresas ‘não contratem mais aquela gente lá de cima’, em referência aos baianos libertados em Bento Gonçalves/RS. Fantinel sugere que se dê preferência a empregados vindos da Argentina, que, segundo ele, seriam “limpos, trabalhadores e corretos”.

Em seu discurso, o vereador se refere aos baianos como aquela gente que vive na praia, a tocar tambor e de quem não se espera nada mais do que problemas e situações não desejadas pelos empresários do sul do país, em especial pelos empresários gaúchos. Tal conduta adotada pelo vereador importa no reconhecimento da prática do crime de racismo, descrito no artigo 20 da Lei nº 7.716/89.

Lei nº 7.716/89

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. 

Pena: reclusão de um a três anos e multa.

A Lei de racismo sofreu, em 2023, alteração na sua redação, para acrescentar a majorante do crime praticado por funcionário público; e o vereado, embora se trate de agente político, e não de servidor público, no sentido estrito da definição, pode ser classificado como funcionário público, para efeitos penais, nos termos do art. 327 do Código Penal.

Funcionário público

Art. 327 – Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.

Lei nº 7.716/89

Art. 20-B. Os crimes previstos nos arts. 2º-A e 20 desta Lei terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando praticados por funcionário público, conforme definição prevista no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las.      (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

Ao editar a Lei nº 14.532/23, que alterou a Lei de Racismo, o legislador trouxe a preocupação de promover a interpretação autêntica do que se considera conduta discriminatória:

Lei nº 7.716/89

Art. 20-C. Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência.      (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

As dúvidas quanto à possibilidade de se atribuir o crime de racismo ao referido vereador, por se tratar de discriminação contra seus compatriotas, cidadãos oriundos de outro estado brasileiro, foram dissipadas por decisão do Ministro Sebastião Reis Júnior, na Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento de recurso especial, em 2018.

Na oportunidade, o  STJ decidiu, quando do julgamento do REsp n. 1.569.850/RN, que o delito de racismo previsto no Art. 20, §2º, da Lei nº 7.716/89, consiste na expressão de superioridade, em contraposição a inferioridade de coletividades humanas. Neste sentido:

1. O delito do art. 20, § 2º, da Lei n. 7.716/1989, consiste na expressão de superioridade em contraposição à inferioridade de coletividades humanas. A Convenção Interamericana de Direitos Humanos, ao tratar da liberdade de expressão, dispôs explicitamente no art. 13.5 comando criminalizatório do discurso de ódio que, em nosso ordenamento jurídico, o dispositivo em comento faz as vezes. (REsp n. 1.569.850/RN, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 24/4/2018, DJe de 11/6/2018.)

O recorrente interpôs recurso especial, no qual alegam em síntese, que o acórdão recorrido teria negado vigência aos arts. 20 da Lei n. 7.716/1989, porquanto o Tribunal local teria entendido pela atipicidade da conduta do representado que, na rede social Facebook, teriam postado as seguintes frases:

Ebola, olha com carinho para o Nordeste e E aí tudo graças aos flagelados nordestinos que vivem de bolsa esmola”.

No caso vertente, ao meu sentir, as frases publicadas assentam suposta inferioridade das coletividades ofendidas, as pessoas oriundas do nordeste do Brasil. Ao considerar que as pessoas dessa coletividade deveriam ser olhadas com carinho pelo ebola, o recorrido, em tese, externou juízo de desprezo sobre todos esses grupos.

Assim, parece-me que, ao emitir tal juízo de valor à mencionada coletividade, o recorrido, em tese, pode ter praticado preconceito de procedência nacional, permitindo a movimentação do aparato persecutório estatal.

Na ocasião, faz-se necessário relembrar que a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, ao tratar da liberdade de expressão, dispôs explicitamente no art. 13.5 que a […] lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.

No dia 05 de março, aproveitando a presença de Gilberto Gil, músico baiano e ex-Ministro da Cultura, para um show em Porto Alegre/RS, o governador do estado pediu desculpas pelas falas xenófobas do parlamentar local, e afirmou que ele não representa os gaúchos.

Em razão dos eventos na Serra Gaúcha, a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil) suspendeu a participação das vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton de suas atividades. A ApexBrasil é um serviço social autônomo vinculado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), que promove os produtos brasileiros no exterior.

Confira a análise dos fatos em vídeo no canal do YouTube do Professor Flávio Milhomem:

Flávio Milhomem
Flávio Milhomem

Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade Católica Portuguesa, Especialista em Combate à Corrupção (Magistrado Associado) pela Escola Nacional da Magistratura Francesa (ENM/France).