A VALIDADE DO RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO COMO MEIO DE PROVA – INTERPRETAÇÃO JURISPRUDENCIAL

A Sexta Turma do Superior de Justiça, por ocasião do julgamento do HC n. 598.886/SC (Rel. Ministro Rogerio Schietti), realizado em 27/10/2020, conferiu nova interpretação ao art. 226 do CPP, a fim de superar o entendimento, até então vigente, de que referido o artigo constituiria “mera recomendação” e, como tal, não ensejaria nulidade da prova eventual descumprimento dos requisitos formais ali previstos. 

Na ocasião, apresentaram-se quatro conclusões:

I – O reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime; 

II – À vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo;

III – Pode o magistrado realizar, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório, bem como pode ele se convencer da autoria delitiva com base no exame de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento; 

IV – O reconhecimento do suspeito por simples exibição de fotografia(s) ao reconhecedor, a par de dever seguir o mesmo procedimento do reconhecimento pessoal, há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo.

AJUSTE NAS CONCLUSÕES DO HC 598.886/SC

Posteriormente, no julgamento do HC n. 712.781/RJ (Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, julgado em 15/3/2022, DJe de 22/3/2022), procedeu-se a um ajuste na conclusão n. 4 do HC 598.886/SC, para se estipular que não se deve considerar propriamente o reconhecimento fotográfico como “etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal”, mas apenas como uma possibilidade de, entre outras diligências investigatórias, apurar a autoria delitiva. 

A ANÁLISE DO TEMA NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Tratando o mesmo objeto, em julgamento concluído no dia 23/2/2022, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal deu provimento ao RHC n. 206.846/SP (Rel. Ministro Gilmar Mendes), para absolver um indivíduo preso em São Paulo depois de ser reconhecido por fotografia, tendo em vista a nulidade do reconhecimento fotográfico e a ausência de provas para a condenação. Reportando-se ao decidido no julgamento do referido HC n. 598.886/SC, no STJ, foram fixadas três teses: 

I – O reconhecimento de pessoas, presencial ou por fotografia, deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime e para uma verificação dos fatos mais justa e precisa; 

II – A inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita, de modo que tal elemento não poderá fundamentar eventual condenação ou decretação de prisão cautelar, mesmo se refeito e confirmado o reconhecimento em Juízo.  Se declarada a irregularidade do ato, eventual condenação já proferida poderá ser mantida, se fundamentada em provas independentes e não contaminadas;

III – A realização do ato de reconhecimento pessoal carece de justificação em elementos que indiquem, ainda que em juízo de verossimilhança, a autoria do fato investigado, de modo a se vedarem medidas investigativas genéricas e arbitrárias, que potencializam erros na verificação dos fatos.

VALIDADE EPISTEMOLÓGICA DO RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO

Para o Professor Jordi Ferrer-Beltrán, jurista espanhol que escreve sobre a prova e a verdade no direito, o reconhecimento pessoal feito após o reconhecimento fotográfico não tem valor probatório, pois pode ser influenciado pela memória e pela sugestão da autoridade policial. Neste sentido:

“O reconhecimento fotográfico é um procedimento que consiste em apresentar à vítima ou à testemunha uma série de fotografias para que identifique o suposto autor do fato delituoso. Trata-se de um procedimento muito utilizado na prática policial e judicial, mas que apresenta sérios inconvenientes epistêmicos e processuais. Em primeiro lugar, porque a memória humana é frágil e suscetível a distorções e interferências. Em segundo lugar, porque o procedimento pode ser influenciado por fatores externos, como a sugestão ou a pressão da autoridade que realiza o ato. Em terceiro lugar, porque o reconhecimento fotográfico pode condicionar ou contaminar o posterior reconhecimento pessoal em juízo.” (FERRER-BELTRÁN, Jordi. Prova sem Convicção: standards de prova e devido processo. Tradução Vitor de Paula Ramos. Salvador: Juspodivm, 2022. p. 153).

A nova interpretação do art. 226 do CPP reforça a importância de observar o procedimento de reconhecimento de pessoas como uma garantia mínima para o suspeito de um crime e para uma verificação mais justa e precisa dos fatos. A invalidação do reconhecimento em caso de inobservância não pode fundamentar eventual condenação ou prisão cautelar, devendo ser mantida apenas se houver provas independentes e não contaminadas.

Flávio Milhomem
Flávio Milhomem

Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade Católica Portuguesa, Especialista em Combate à Corrupção (Magistrado Associado) pela Escola Nacional da Magistratura Francesa (ENM/France).