Feminicídio: O que 60 socos revelam sobre a violência doméstica no Brasil

No dia 26 de julho, em Natal/RN, Juliana, 35 anos, promotora de vendas, foi vítima de uma brutal tentativa de feminicídio. Foram 60 socos. Sessenta vezes um punho cheio de ódio e intenção de matar acertou seu rosto. Mas, afinal, como a violência chega a esse ponto?

A escalada invisível da violência doméstica

A violência doméstica raramente começa com agressões físicas. Antes do primeiro soco, há um histórico marcado por ciúmes excessivos, controle emocional disfarçado de cuidado, chantagens psicológicas e humilhações sutis. Esses comportamentos, muitas vezes ignorados ou banalizados, são justamente o que alimentam o ciclo que leva à agressão extrema.

Juliana nunca solicitou uma medida protetiva, talvez acreditando que a situação não chegaria tão longe. Infelizmente, como o caso dela demonstra, as agressões escalam rapidamente e, frequentemente, terminam em tragédia.

Feminicídio: uma questão de gênero

O crime cometido contra Juliana foi corretamente enquadrado como tentativa de feminicídio. Feminicídio não é apenas matar uma mulher, mas matá-la justamente por ser mulher. Por não se submeter, por decidir partir, por querer viver com autonomia. O feminicídio se alimenta da cultura machista que insiste em controlar e punir mulheres que ousam decidir sobre suas próprias vidas.

Em 2024, o Brasil registrou alarmantes 1.492 feminicídios, o maior índice da história, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Mais de 60% dessas mulheres eram negras e mais de 70% tinham entre 18 e 44 anos. Quase todas foram assassinadas por seus companheiros ou ex-companheiros, frequentemente dentro de suas próprias casas.

A importância do julgamento com perspectiva de gênero

O Direito não pode ignorar o contexto dessas violências. O Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) orienta profissionais a considerarem não apenas o fato concreto, mas toda a história de violência que precede o crime. Contudo, esse protocolo atualmente enfrenta resistência por setores conservadores, o que ameaça um avanço essencial para o enfrentamento do feminicídio.

Ao julgar casos de violência doméstica, você – estudante, advogada, juíza, promotora ou defensora pública – terá a responsabilidade de reconhecer essas nuances. Você precisará escolher entre perpetuar a invisibilidade ou aplicar a justiça com sensibilidade, enxergando o padrão de violência, controle e humilhação que precede cada agressão física.

Seu papel na ruptura do ciclo da violência

Sessenta socos não surgem do nada. Eles resultam da impunidade, da conivência social, do machismo estrutural e da falha em aplicar um direito mais humanizado. Por isso, cada profissional que atua na área jurídica é essencial para interromper essa cadeia de violência.

Você tem o poder de transformar a dor em justiça e prevenção. Se souber ou presenciar casos de violência doméstica, denuncie imediatamente na Ouvidoria da Mulher do Ministério Público do seu estado, onde a vítima também pode solicitar uma medida protetiva.

Conclusão: um chamado à ação

O caso de Juliana chocou o país por ter sido filmado, em um ambiente de classe média. Mas e todas as outras vítimas invisíveis? Nosso dever é garantir que casos assim não se repitam, aplicando o Direito com a responsabilidade e a sensibilidade que o tema exige. Prepare-se para ser essa mudança, pois amanhã, a próxima vida salva pode depender da sua atuação.

Flávio Milhomem
Flávio Milhomem

Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade Católica Portuguesa, Especialista em Combate à Corrupção (Magistrado Associado) pela Escola Nacional da Magistratura Francesa (ENM/France).