A Abordagem Policial Violenta e a Nulidade das Provas: Uma Questão de Direitos Humanos e Garantias Processuais

Introdução

A violência estatal, especialmente em contextos de abordagem policial, é um tema sensível e recorrente no Direito Penal contemporâneo. Não só pela gravidade dos atos envolvidos, mas também pelas implicações diretas sobre a validade das provas colhidas e a regularidade do processo penal. Em tempos de crescente discussão sobre o abuso de autoridade e a proteção dos direitos fundamentais, a jurisprudência tem reafirmado a inadmissibilidade das provas obtidas mediante tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante. Este artigo analisa o tema a partir de um recente julgado do STJ (HC 933.395/SP) e discute suas repercussões práticas para o operador do Direito.

Capítulo 1: A Situação-Fato e a Conduta Policial

No caso julgado pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, as câmeras corporais dos policiais registraram agressões físicas contra um paciente que, após se render sem qualquer resistência, continuou sendo submetido a atos violentos. O laudo de corpo de delito confirmou a existência de lesões compatíveis com as agressões narradas, fortalecendo o argumento de que houve violação grave aos direitos humanos.

Além disso, há trechos das gravações que sugerem tentativa de ocultar as imagens da violência, revelando a consciência da ilicitude por parte dos agentes públicos. Trata-se, portanto, de uma abordagem sem fundada suspeita, com emprego de violência desnecessária, que ultrapassa os limites da atuação policial legítima.

Capítulo 2: Direitos Humanos e a Proibição da Tortura

A Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, inciso III, proíbe expressamente a tortura e o tratamento desumano ou degradante. Esse comando se alinha com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, em especial com a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica).

Nos termos do art. 5.2 da Convenção, “ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes”. O sistema interamericano adota a chamada “regra da exclusão da prova ilícita”, estabelecendo que a confissão ou qualquer prova obtida mediante coação não possui validade (art. 8.3).

Capítulo 3: A Ilicitude das Provas e o Art. 157 do CPP

O art. 157 do Código de Processo Penal é categórico ao prever que são inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos, assim como aquelas delas derivadas. Isso significa que não apenas a prova direta (por exemplo, uma confissão sob tortura), mas também os elementos posteriores que se originam dela devem ser desentranhados do processo.

No caso analisado, a violência policial comprometeu toda a legalidade da abordagem e da obtenção das provas, tornando-as absolutamente nulas. Essa conclusão não é apenas uma exigência formal, mas uma garantia substancial da dignidade da pessoa humana e da integridade do processo penal.

Capítulo 4: Reflexos para a Prática Penal e os Concursos

Para advogados criminais, estudantes de Direito e concurseiros, esse precedente do STJ é um exemplo contundente da aplicação prática dos princípios constitucionais. Em provas discursivas e orais, é essencial demonstrar conhecimento da jurisprudência recente e saber articular os tratados internacionais com a legislação infraconstitucional.

Na prática, a atuação da defesa deve ser vigilante quanto à origem das provas e atenta aos sinais de abuso de autoridade. A gravação por câmeras corporais, além de instrumento de fiscalização, tem se mostrado uma ferramenta de proteção à verdade processual.

Conclusão

A mensagem que emerge desse julgado é clara: não há espaço para a admissão de provas contaminadas por atos de tortura ou tratamento degradante. O processo penal deve estar ancorado em garantias, respeito à dignidade humana e legalidade. Cabe ao operador do Direito, seja na advocacia, na magistratura ou no Ministério Público, zelar para que essas garantias sejam mais que enunciados formais: que sejam efetivamente respeitadas em cada ato do processo.

Flávio Milhomem
Flávio Milhomem

Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade Católica Portuguesa, Especialista em Combate à Corrupção (Magistrado Associado) pela Escola Nacional da Magistratura Francesa (ENM/France).