O Juízo da Execução Pode Modificar o Acordo de Colaboração Premiada?

Introdução

A colaboração premiada tornou-se um dos instrumentos mais relevantes no combate ao crime organizado e à corrupção no Brasil. Prevista na Lei nº 12.850/2013, ela estabelece um pacto entre o Ministério Público e o colaborador, que, em troca de benefícios, auxilia na investigação ou na instrução processual.

Mas uma dúvida que frequentemente surge — tanto na prática penal quanto em provas de concursos — é a seguinte: o Juízo da Execução Penal pode estabelecer condições diferentes daquelas firmadas no acordo de colaboração premiada?

Neste artigo, vamos esclarecer essa questão com base na jurisprudência atual dos tribunais superiores, especialmente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF).


Capítulo 1: A Natureza Jurídica do Acordo de Colaboração Premiada

Diferentemente da pena aplicada após sentença condenatória, o acordo de colaboração premiada não possui natureza de sanção penal tradicional. Trata-se de um ajuste entre o Ministério Público e o colaborador, homologado judicialmente, com benefícios que não derivam de uma condenação propriamente dita, mas sim do cumprimento de compromissos assumidos voluntariamente.

Por isso, o regime de cumprimento desse acordo não se enquadra na estrutura clássica da Lei de Execução Penal (LEP).


Capítulo 2: A Jurisprudência do STJ sobre o Tema

A questão foi analisada recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça, no AgRg no HC 846.476/RJ, de relatoria do Ministro Joel Ilan Paciornik, julgado por unanimidade pela Quinta Turma em 22/10/2024, com publicação no DJe em 25/10/2024.

Nesse julgamento, o STJ reafirmou que o Juízo da Execução Penal não pode impor condições além daquelas previstas no acordo de colaboração premiada. A decisão deixa claro que:

“A pena decorrente do acordo de colaboração premiada não constitui reprimenda no sentido estrito da palavra, pois não decorre de sentença de natureza condenatória decretada pelo Poder Judiciário, mas sim de pacto firmado entre o Ministério Público e o agente.”

Ou seja, o acordo tem caráter contratual, e sua execução deve observar exclusivamente os termos que nele foram ajustados. Eventual descumprimento implica sua revogação e o oferecimento de denúncia, com o prosseguimento regular da ação penal.


Capítulo 3: Não Se Trata de Execução Penal Típica

A Corte Especial do STJ, no julgamento do AgRg na Pet 12.673/DF (Rel. Min. Raul Araújo), reforçou que a privação de liberdade resultante de colaboração premiada não equivale à prisão-pena, afastando, portanto, a aplicação integral da LEP.

Essa lógica também foi acolhida pelo Supremo Tribunal Federal. No RE 1.366.665 AgR, sob relatoria do Min. Edson Fachin, a Corte destacou:

“Deve ser respeitado o limite máximo e global da sanção ajustada no ato cooperativo.”

Assim, não cabe ao Juízo da Execução “complementar” ou “interpretar extensivamente” o acordo, sob pena de violar a autonomia das partes e a segurança jurídica do colaborador.


Capítulo 4: Reflexos para a Prática e para os Concursos

Essa compreensão é essencial tanto para operadores do Direito quanto para candidatos em concursos da magistratura, Ministério Público, Defensoria e Advocacia Pública.

Em provas, é comum a cobrança de assertivas como a seguinte:

“O Juízo da Execução Penal pode estabelecer condições não previstas no acordo de colaboração premiada.”

Resposta: Errado. Como vimos, o juiz está vinculado aos termos do acordo, não podendo inovar na fase de execução.

Na prática, advogados devem estar atentos para fiscalizar o fiel cumprimento do que foi pactuado, evitando que o Poder Judiciário extrapole sua função homologatória e de controle de legalidade.


Conclusão

A colaboração premiada é um instrumento poderoso, mas seu uso exige respeito às garantias legais e aos limites da atuação judicial. A execução dos termos do acordo deve seguir exatamente o que foi pactuado entre o colaborador e o Ministério Público, sem ingerência indevida do Juízo da Execução.

A recente decisão do STJ no AgRg no HC 846.476/RJ reforça essa diretriz e deve servir como importante norte interpretativo para a doutrina, a jurisprudência e, claro, para os candidatos em concursos da área jurídica.


Confira o vídeo em que o Professor Flávio Milhomem analisa a decisão:

Flávio Milhomem
Flávio Milhomem

Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade Católica Portuguesa, Especialista em Combate à Corrupção (Magistrado Associado) pela Escola Nacional da Magistratura Francesa (ENM/France).